quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Na minha língua não mexem vocês!

A língua portuguesa faz parte de mim desde que nasci, e tenho com ela uma relação de intimidade extrema. Os meus pensamentos materializam-se nesta língua. É nesta língua que eu expresso o meu amor pelas pessoas mais importantes da minha vida, é com esta língua que eu tento motivar e dar alegria de viver a quem amo quando mais precisam. É nesta língua que eu escrevo reflexões desenterradas do mais profundo de mim antes de adormecer e mantenho um registo do meu crescimento e história. (Há quem diga que a língua portuguesa, pela sua riqueza, tem muitas mais potencialidades neste propósito do que outras línguas.)

E agora vêm uns fedelhos, que não sabem nada sobre comunicação nem sobre linguística, introduzir-se desta forma invasiva na língua com que eu sonho, e na língua com que todas e todos construímos a nossa história, e forçar-nos a escrever de determinada maneira?

Chamem-me sensível, mas injectar-lhe uma directiva que vem do exterior, mal fundamentada e prepotente, é um pouco desrespeitoso. É artificial, é desagradável, é sujo.

Sobre isso ando a escrever — e reescrever, e a arrumar, e a escrever outra vez (daí a demora) — alguns textos, que podem encontrar aqui.

domingo, 8 de novembro de 2015

Era difícil não amar uma vida tão simples e completa, oásis de paz e calma, isolado de um mundo em ruptura. Mas olhava para a neve onde nos declamávamos o dia todo, e éramos tão poucos, e tão frágeis...! Temia imenso, nada pelas nossas vidas, muito pelos textos em nós. A resistência que levávamos era tão pacífica como passiva, e eu precisava de agir. Não aguentava aquele intervalo e incerteza, e foi por isso que me escrevi.

(Publicado no blog das Histórias em 77 palavras, em resposta ao desafio nº 100.)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A partir de hoje sou professor.

Tenho feito muitos workshops e masterclasses de danças urbanas, dados por bailarin@s e coreógraf@s excelentes que eu admiro mas que, no entanto, não fazem a mínima ideia do que significa ensinar. Eu posso não conseguir reproduzir as coreografias mais complicadas que se ensinam por aí, posso por vezes ser desajeitado a dançar, e o meu freestyle está tão destreinado que enjoa — mas de uma coisa eu estou certo: eu sei ensinar.

Não quero tirar o mérito a ninguém. Admiro praticamente tod@s @s coreógraf@s de danças urbanas mais conhecid@s em Portugal. Mas é muito fácil cairmos na rotina de chegar, passar uma coreografia e ir embora. Muita gente, inclusivé as pessoas mais aclamadas, fazem isso. "Eu não vou estar a chatear-vos com o aquecimento, porque vocês tiveram outra aula ainda agora, portanto vou começar já a passar-vos a coreografia."

De todas as coisas que um/a professor/a de dança pode fazer, passar uma coreografia é a mais fácil. É a que dá mais garantias de que @s alun@s vão conseguir fazer tudo bem e ficar satisfeit@s. Transmitir a alegria pela dança... é muito mais difícil.

Mas o que é que eu quero deixar para os meus alunos e as minhas alunas? Quero fornecer-lhes uma dose periódica de coreografias para dançarem durante umas semanas e depois esquecerem? Que infrutífero! O que eu quero deixar-lhes é algo mais perene.

Quero que, quando uma música começar a tocar, a vergonha não lhes tente domar os pés e não os obrigue a ficarem a um canto da sala; em vez disso quero dar-lhes um dicionário de passos — por mais pequeno que seja — que lhes permita aproveitar realmente a música e divertirem-se. Talvez até convençam @s amig@s a dançar também. E depois quero que aprendam a explorar sozinh@s todos os movimentos que o corpo humano permite fazer, porque assim poderão inventar os seus próprios passos. Quero que a dança seja mais uma ferramenta para se exprimirem, porque falar ou escrever não chega para dizer metade do que sentimos.

E mesmo assim tudo isso ainda é um objectivo pouco ambicioso. Tudo o que faço, faço por um motivo, e para mim o objectivo tem que ser um pouco mais nobre:

  • Que a dança possa ajudar a construir e a manter a auto-estima.
  • Que possamos superar medos — medo da dança, medo do palco, medo da vida.
  • Que todas as semanas tenhamos umas horas onde podemos comunicar de outras maneiras para além da linguagem verbal, porque isso é importante.
  • Que possamos construir em conjunto uma pequena obra de arte que é de todes igualmente.
  • Que saibamos ouvir-nos. Que nos ajudemos mutuamente e que ensinemos coisas entre nós, mais do que ser só o professor a ensinar.
  • Que possamos descobrir o nosso corpo, porque ele é capaz de fazer tantas coisas que nós nunca imaginámos. Se o conhecermos melhor, isso vai ajudar-nos em toda a vida.
  • E podia dizer tanto mais aqui...

É por não haver nada destas coisas que começo a ficar mesmo farto de workshops e masterclasses.

Hoje uma aluna minha estava um pouco atrapalhada com um passo da coreografia. Tentei ajudá-la, devagar e com paciência, mas a frustração começou a aparecer-lhe. Insisti que continuasse a tentar. Corri o risco de ela se achar incapaz e de desistir, de ficar chateada consigo própria e de se ir sentar. Com o ar mais desajeitado de sempre, esforcei-me por transmitir-lhe que ficava ali todo o tempo que ela precisasse, porque acreditava nela, e convenci-a a continuar. E por isso hoje foi diferente. Hoje ela não foi para casa com uma coreografia nova — foi para casa com uma capacidade nova. E da próxima vez que ela se deparar com uma dificuldade, talvez se lembre do dia de hoje e isso a motive a tentar ir um pouco mais longe.

Eu dou aulas de Hip Hop há dois anos. Mas só a partir de hoje sou professor.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Em paz

26 de Junho de 2015 nas primeiras horas do dia.

Quando tudo me parece familiar e seguro, e sinto o aconchego quente das pequenas coisas maravilhosas... Ou quando choro encolhido nas pedras da rua e atacado pela chuva impiedosa, desamparado, desnudo... É aí mesmo, nessa aresta!, que está a beleza da minha vida.

A natureza é tão perfeita e equilibrada que me leva a crer que a vida deve exactamente tantas horas à fogueira aconchegante como ao vento gélido. Mas essa é uma simetria que dói aceitar. Afinal não é suposto termos mais horas de alegria do que desespero...? Que se dane o rácio. A felicidade está em nós, na forma como vemos as coisas, como agimos e somos.

Se a felicidade é um caminho e não um destino, então eu posso ser a pessoa mais feliz do mundo nas vésperas da mais temível avaliação! A felicidade não é um alívio que só acontece depois de eu ter um emprego, uma família e muito sucesso. Não é uma recompensa! A felicidade não é um alívio que tenha que esperar que eu chegue à meta de acabar estas avaliações todas, daqui a uns dias. A felicidade não é um alívio que tenha que esperar que o dia chegue ao fim para me reconfortar na cama. Cada segundo que eu esperar para ser feliz será um segundo completamente desperdiçado. A felicidade é um caminho, não um destino, e por isso não se espera para chegar lá; anda-se.

É esta a magia do último comboio, a deslizar iluminado pela noite silenciosa e simples: deixa-me pensar. E quando saio dele a brisa fresca da noite pede-me para continuar.

Deixo-me ascender sozinho nas escadas rolantes, tão leve como uma alma que se eleva para o céu. Este espaço é paradoxal — nem é exterior nem interior! — e a luz branca inunda a matéria do vidro. De repente sinto-me estupidamente feliz, talvez como nunca estive na vida. Do meio do meu peito escorre um pouco de excitação, e espalha-se pelas veias.

Saio da estação e acredito que não vou sobreviver à viagem de carro até casa.
Em paz.

Não estou mesmo a conseguir imaginar o dia de amanhã.
Não consigo imaginar acabado aquele livro que tenho estado a fazer com aquele grupo maravilhoso.
E estou bem.

Se eu morresse agora, ia deixar um monte de coisas por acabar...
Mas se eu morrer só daqui a cem anos também vou deixar um monte de coisas por acabar. Não há outra maneira, a morte é inesperada, e esperar por ela é morrer. Se eu estiver preparado quando a morte chegar, então ela já me encontrará morto.

Se eu morresse agora queria que continuassem o que eu comecei.
Não para que permanecesse a minha memória ou a minha fama, mas porque queria que aquilo que eu deixasse fosse tão bom e tão benéfico que valesse a pena continuarem a fazê-lo. Se eu morresse agora queria que as minhas alunas e os meus alunos continuassem a dançar, não para se lembrarem de mim e me fazerem uma homenagem, mas porque essa dança as deixava felizes, e era uma motivação para se superarem a si próprios todos os dias. Quero acima de tudo que o bem que eu tenha feito ao mundo permaneça.

A estrada infinita, completamente lisa, é interrompida pelo peso da Nuxa, a minha viatura. Tão pequena e frágil durante o dia, mas tão grande e robusta no meio desta noite vazia e desta estrada lisa. Ela tem-me tornado tudo tão mais próximo, tão mais aconchegado e simples. Arrependo-me de todas as vezes que disse que odiava carros. Sinto vontade de abraçá-la.

O meu alívio e a minha felicidade não têm que esperar que eu chegue a casa para dormir daqui a pouco. Estou feliz. Acho mesmo que vou morrer na viagem de carro até casa, por isso é melhor escrever tudo antes de ligar o motor. Entre mim e o volante, o computador aquece-me o colo, e aconchega-me tanto. Ele nunca liga depressa, mas desta vez ligou. E escrevi tudo antes de me entregar à estrada, confiante que o computador fosse recuperado do meio dos escombros e que estes bytes de texto pudessem sossegar as pessoas que amo.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

"Amo-te tempo"

Talvez não houvesse frase mais antípoda ao modo de vida que levo, que levamos. É sempre o tempo o culpado, o impedimento, o ditador. Durante os intervalos falamos sobre isso, eu e colegas, e de pouco mais.

Imaginem como me fascinei ao deparar-me com o pensamento exactamente contrário. De facto, o optimismo é uma coisa poderosa. Eu também quero amar o tempo. Eu um dia hei-de amar o tempo... Por agora estamos em reconciliação. Já estivemos bem pior.

Trata-se de uma carta do artista contemporâneo Felix Gonzalez-Torres para o seu amante em 1988. Tem tudo a ver com a sua obra "Untitled" (Perfect Lovers), que é uma metáfora do amor usando... relógios. Surpreendente, não é? Sobre esta peça pode ler-se mais aqui.

Esta obra, por indicação do artista, só pode ser apresentada sobre uma parede azul-claro. É tão fácil imaginar a brancura de um hospital... o silêncio... a espera... mas uma espera sincronizada, e de certa forma, em paz. É trágico e belo ao mesmo tempo.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

O Fim da História

Tive uma infância de espera, deslizada pelo virtual, solitária. Esperei por nascer para o mundo, e só há três ou quatro anos nasci e vi o mundo pela primeira vez. Se antes era um satélite desmotivado à volta da Terra, desejo agora ser uma árvore com raízes em todo o planeta. Quero estar ligado a um pouco de tudo, enlear-me com a Terra e no fim voltar a ser Terra. É isso que quero.

Mas tive o infortúnio de chegar a este mundo pouco antes dele se transformar em ruído, e enquanto se desintegra eu desespero por beber cada gota de tudo o que ainda não foi nivelado. Interessam-me todas as coisas. Anseio por todas as coisas.

Se alguma vez tu e eu partilhámos um momento espontâneo e verdadeiro, se decidimos preencher um segmento do nosso tempo com esta actividade nostálgica de termos corpo e massa, (movimento mais que pensamento), se pelos mais breves momentos tentámos adivinhar os pensamentos que nos habitavam, então és importante para mim. Estou grato por teres partilhado comigo o prazer da tua fisicalidade, por teres existido comigo.