quarta-feira, 28 de junho de 2017

Abranda o meu coração vencido: Um manifesto cansado

Por Andrea Balt. Tradução de Tomás Barão. Ver aqui o original em inglês

Eu gostava de ter tempo para me ajoelhar e cheirar as flores, ficar com a cara cheia de pólen e ser peserguida pelas abelhas por ser intrometida.

Gostava de lembrar-me do cheiro de uma manhã cedo; acordar com o Sol e ser a primeira Eva que alguma vez andou na Terra, nua. Alguém sabe o que é orvalho?

Gostava de ser um gato cada vez que me espreguiçasse e sentir as minhas células a multiplicar-se enquanto chego ao outro lado de um bocejo; descafeinar a minha pulsação, verdejar o meu chá.

Gostava de atingir uma escala mais alta na minha sinfonia de chuveiro, compôr uma ópera ali mesmo e salpicar as paredes da casa-de-banho com notas. Lavar todos os meus pecados com sabonete orgânico.

Gostava de me sentar sem me mexer até que todo o meu medo morra de fome e o silêncio já não incomode; respirar profundamente num peito universal como um órgão são. E depois nascer e ter curiosidade pelo mundo outra vez, apontando as coisas com dedos rechonchudos, porque elas são tão novas, ainda ninguém lhes deu nome.

Gostava de responder a todas as chamadas telefónicas e sentir os como-estás e não poupar a minha honestidade até que todos os adeus sejam sentenciados por cima da minha cabeça sem fios.

Gostava de ser amiga dos insectos e dos seres humanos. Não ter medo de espelhos. Nem sequer gritar quando vejo aranhas.

Gostava de yogalizar a minha postura, budalizar as minhas orações, jesuisar o meu amor e hinduizar o meu sorriso.

Gostava de segredar só para algumas pessoas debaixo de um cobertor, em vez de gritar para centenas sobre os telhados da internet.

Gostava de deixar um coração em cada palavra, mesmo que ele acabe tão agredido que eu perca as minhas sete vidas antes da minha sepultura estar pronta.

Gostava de amar-te em voz alta, e não apenas na caverna escura da minha mente, com morcegos pendurados nos meus olhos.

Gostava de falar com frases completas, em vez de SMSar e-pessoas com LOL-vidas sempre em !!!! busca de + #Gostos no Facebook. Gostava de beijar com os meus lábios em vez de mandar Bjs com o meu teclado.

Gostava de ser 100% reciclável, indetectável, não recordada, apenas notada, não-violenta, transparente, como a água; doar todos os meus órgãos e deixar apenas pegadas numa praia, e não marcas de carbono na cara dos meus futuros filhos.

Gostava de fazer sestas, muitas sestas, de preferência num baloiço ou ao pé de uma lareira, de preferência ao sol, com um cão a babar-se aos meus pés; e nunca mais ter de ouvir o som de um despertador.

Gostava de escrever cartas — pelo menos uma vez por mês, com tinta verdadeira, em papel reciclado espesso, e selá-las com o meu anel em lacre; enviá-las num pombo-correio e depois esperar pacientemente pela resposta, enquanto olho pela janela de um castelo. Não digitar átomos irrequietos num ecrã, clicar, clicar duas vezes para abrir, fechar e abrir, fechar outra vez, porque-raio-não-carregas, m*rdinha acéfala e irritante?

Gostava de ter alguma fé, qualquer fé de que consigo andar na água e não me afogar; e mesmo que não tivesse essa fé, saltasse do barco sem colete; especialmente durante a época dos tubarões.

Gostava de ouvir alguns pássaros verdadeiros a cantar por cima do meu ombro, e não pássaros azuis mortos a publicar hashtags com os meus dedos.

Gostava de acabar de ler todos os livros que comecei. Rever a história universal através de cada par de óculos. E depois de estar tudo dito, ficar ainda mais certa de que nada sei.

Eu gostava de amar e perder e amar outra vez, e perder e amar e perder outra vez, porque o que há de mais para fazer?

Gostava de me sentar com pessoas mais velhas e perceber porque é que elas não têm pressa, descansar por uns minutos na sombra das suas rugas profundas; e ouvir as histórias que contam do tempo em que o mundo não costumava acabar.

Gostava de acreditar que não somos apenas números mais minutos mais sangue, mas sim questões humanas coladas todas juntas e perigosamente vivas; e, como em todos os grandes contos, as pessoas iriam identificar-se connosco, apesar de nunca termos acontecido em nenhum tempo e nenhum espaço.

Gostava de ser mais do que uma palavra, uma frase ou um parágrafo. Gostava de ser um capítulo inteiro, ou melhor, um romance. Ser escrita em detalhe. Sobreviver à escuridão. Refrasear a luz.

Gostava de pensar sem pensamentos que o coração é o seu próprio país, no qual me aceitam sem nenhum passaporte e sem qualquer tipo de nome.

E escrever sem dedos sobre essa vida cintilante que passa enquanto escrevemos, incessantemente, que a vida nos está a escapar pelos dedos.

Partindo de Olga Roriz...

Uma dos artistas que mais admiro. Em tempos de apatia, ouvir a Olga Roriz falar faz-me ebulir o sangue.

A Olga põe-se a ler a sua biografia — escrita pela jornalista Mónica Guerreiro, um livro enorme e fantástico que tenho cá em casa — e, segundo nos diz, fica com a sensação de que é um gato com sete vidas, porque já fez tanta coisa, já influenciou tantas pessoas... e no entanto ainda cá está, viva, a trabalhar. É uma sensação que já tive e quero continuar a ter, essa de uma história bem preenchida e complexa. Para mim significa que estamos a aproveitar a vida.

Talvez eu nunca deixe de ficar fascinado com este país pequenino onde há tanto cinema, tanta dança, tanta música, tanto teatro e tantos teatros. Quando oiço a Antena 2 é sempre um misto de ansiedade por conhecer tão pouco e me sentir tão pequenino (algo que aprenderei a dominar) e de enorme gratidão por existirem tantas coisas tão belas e tão diversas para descobrir. A mesma sensação me dá o mundo da Olga Roriz. Os cafés depois dos ensaios, um filme feito na praia, os livros trazidos para o estúdio de manhã para alimentar o processo criativo, as tardes a ouvir ópera de janela aberta para que possa sair para a rua, as noites no Lux onde dançam lado a lado cineastas portugueses com histórias preenchidas e jovens que acabam de nascer pela segunda vez, o regresso a casa numa noite de Verão depois de uma estreia, o amor ao canto do bar vestido de negro... Amigues que se especializaram em cenografia e te põem pedras e água no palco, ou aqueles que filmaram assiduamente toda a tua obra, ou as outres que no meio de tudo isso se tornaram pais das tuas filhas. Os conhecimentos comuns e referências partilhadas que te ligam a uma comunidade e asseguram que aquele é o teu lugar. Uma vida misturada com a arte, num privilegiado conforto burguês. E eu fico a oscilar, entre o sonho-desejo pueril da versão mitificada desta história e a lúcida consciência da realidade: a vida de artista está longe de ser um mar de rosas, mas para as pessoas que sabem apreciar a beleza das pequenas coisas, pode ser uma vida muito satisfatória.

E se considerarmos que toda essa arte forma uma pintura de extrema complexidade, um sistema simbólico vasto e rizomático, por si só já tão valioso, então a História é a terceira dimensão, que vem multiplicar esse quadro infinitas vezes, para o passado e para o futuro. A História não é tirana como as bases de dados ou os registos das câmaras de vigilância: é brumosa como os sonhos, e para aceder a ela é preciso as qualidades humanas de sentir, de recordar e de saber ouvir os outras. Dá-nos a dádiva de saber que por detrás de cada edifício há uma história, e por detrás de cada obra há muitas outras que foram comunicando ao longo do tempo até chegar àquela que vai estrear hoje. Isto não é a melhor garantia de imortalidade que alguém pode ter, fazer parte deste fluxo?

"As pessoas que mais admiro são aquelas que nunca acabam", disse o Almada Negreiros.

Para a experiência humana o mundo é mesmo infinito. Ainda hoje descobri uma estrada bonita na aldeia onde moro há muitos anos, aldeia que eu e os minhas amigos temos o mau hábito de classificar como feia e desinteressante. Para uma artista nenhum sítio é feio ou desinteressante.

Por fim, a gratidão que é uma constante na vida da Olga, por poder fazer o que gosta. Tenho a sorte de ter perto de mim pessoas que vivem assim, gratas pelo que têm de bom. Eu de vez em quando escorrego e esqueço-me... mas vou-me habituando a lembrar.