sábado, 31 de março de 2012

Excesso de Realidade

Doentio vício de descrever os bons momentos através do texto; de tentar capturar e guardar para sempre todos os sentimentos, pormenores, cores, cheiros e sabores daqueles acontecimentos mágicos que me custa a acreditar ter vivido, como se as memórias não fossem mais que suficientes... Desespero na busca de palavras; sacrifico algumas para satisfazer a sede de possuir outros sinónimos. Debruço-me perigosamente no precipício do que é descritível, arrisco-me a tentar descrevê-lo, quase caindo no abismo da frustração. Sem me preocupar vou corroendo a imaginação, tão débil, gemendo a um canto, e que há muito desistiu de sonhar. Nunca sonho. Obceca-me a realidade. Enjoa-me a ficção.

segunda-feira, 12 de março de 2012

O trinco do portão aberto

Sempre foi o cão mais lindo do mundo, mesmo quando os olhos, já encovados, se encheram de ramelas; mesmo quando o pelo cadente se cobriu com chagas; mesmo quando as moscas se tornaram para ele a única presença fiel... Sofreu.

Agora vejo o trinco do portão aberto - aquele frágil portão improvisado que, injustamente, lhe devia vedar o acesso ao jardim seco - e olho à volta. Lá está tudo, igual: as mesas, pintadas de pó castanho, rodeadas das cadeiras franzinas e enferrujadas; os vasos e canteiros abandonados, onde uma verdura efémera passa despercebida; um tronco ou outro a servir de banco, e algumas mangueiras jazendo no chão de mármore quebrado e gasto. Vejo aqui uma natureza morta, que perdeu a pouca vida que lhe restava. Completamente estéril.

Arrependo-me dolorosamente das tantas vezes em que cedi ao irritante e repetitivo “não lhe faças festas”, ou das outras vezes, em que a pressa para chegar a lado nenhum me fez passar-lhe ao lado.

Confortou-me vê-lo ser coberto de uma terra clara e macia. De volta ao solo e ao ciclo da vida. Finalmente aconchegado, e abrigado do frio de cá fora. Terá o destino que desejo para mim próprio - fertilizar um pouco e, com sorte, fazer brotar uma árvore bonita neste mundo de cimento.