terça-feira, 20 de novembro de 2012

Os Sábios

Somos os que ainda não podem ter carro e os que nunca tiveram, ou perderam a paciência para o conduzir. Uns de bom ânimo, outros chateados, todos nos sujeitamos a estes horários para nos podermos deslocar. Somos tão diferentes... Convivemos diariamente dentro desta lata de 30 metros quadrados, 33 sentados, 47 em pé, ora todos encolhidos, ora sentados o mais longe possível uns dos outros.

— Bom dia! — saúda-me a senhora idosa que se senta ao meu lado, obrigando-me a acordar de mil pensamentos.

— Bom dia — tento sorrir-lhe, e ela diz orgulhosa de si:

— Espero que chegue à minha idade. Setenta e oito!

Pequena e enrugada, de pele bronzeada, emana a energia de quem ainda não está cansado de viver. Interrogo-me em que paragem irá sair. Interrogo-me como será a sua rotina, como decidiu gastar os anos que lhe restam, em que o Estado a terá dispensado de trabalhar. Quando a reforma me libertar ou não da minha azáfama, o que vou eu fazer com o meu tempo em branco? Por decisão do acaso, a conversa não se desenvolve, e a senhora sai numa paragem a meio da linha, deixando-me uma leve esperança de a voltar a ver.


Bem longe daí, algumas semanas atrás, eu ouvia numa despedida apressada:

— Quanto eu era da tua idade e ia de barco para a escola, tentava que a viagem parecesse o mais longa possível, para o tempo passar mais devagar.

Não percebo o que quer dizer o meu avô. Perder tempo em transportes?! Passo a vida a reclamar que vivo a correr, que o tempo me escorre pelos dedos, mas só nesse momento percebi que, se calhar, até gosto de viver assim...

— Porquê, avô?

Ele começa a tropeçar nas palavras, como todas as pessoas, quando se lhes pede para explicar algo que para elas é inato. Encolhe os ombros:

— Oh neto... Para o tempo demorar mais a passar...

Não sei se foi ele que conseguiu explicar ou se fui eu que finalmente entendi - fazia-o para a vida parecer menos curta.

“Para o ignorante, a velhice é o inverno da vida.
Para o sábio, é a época da colheita.”
- Talmude

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Português Descorrecto

Ah, muito bem! Sendo assim estou satisfatoriamente satisfeito.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Blasfémia

"Parece tão óbvio o facto que, no tempo de Pessoa (e no nosso; serão diferentes?), os Lusíadas já não fariam sentido como Camões os escreveu. Não passariam talvez, e perdoem-me a ofensa, de uma exaltação livresca e desnecessariamente extensa à barbárie, ao conflito bélico, à sede monstruosa e obsessiva de território.

Camões repete-se incessantemente num tom épico que enjoa. A sua voz forte e emocionada declamando a sua poesia de cima de um penhasco, perante o mar revolto português, acaba por tornar-se apenas um ruído de fundo na televisão enquanto se come o jantar. Falta-lhe o ritmo. Os seus poemas rimam, mas não ritmam. São incompletos. São monótonos. Louvamos um homem porque conseguiu falar bem do país em mil cento e duas estrofes de oito versos de dez sílabas métricas cada e esquema rimático sempre igual. Santa paciência! Como será o manifesto que Almada não escreveu sobre Luiz?

Assim julgo que terá pensado Pessoa, ou de forma menos agressiva. Pessoa foi sensível o suficiente para saber o valor da simplicidade. Convidou suavemente as pessoas a lê-lo, tão ocupadas estavam a repetir a sua rotina cinzenta, a manter a sua ignorância e a polir o seu desinteresse, porque lhes mostrou poemas leves e bonitos antes mesmo de serem lidos, e nessa aparente economia de palavras condensou todo o amor à pátria e aos seus heróis com uma nova magia. Por isso é que foi tão bem-sucedido no seu tempo de decadência. Pessoa foi o génio literário que emergiu no meio do nevoeiro."

Porque é ilegal escrever isto num exame nacional. ;)

terça-feira, 25 de setembro de 2012

minimalismo

Minimal seed-pod.

dizia a minha professora de história da arte, pessoa que nos abriu mil portas e horizontes, que não lhe agradava tanto o minimalismo. que lhe incomodava a frieza, o rigor e a matemática. nunca imaginei que existisse esta opinião. sempre se me mostrou tão inocente, doce.

nada há mais inofensivo que um quadrado rodeado de espaço. nu de todas as artes que o mundo usa para pedir a nossa atenção em todos os sítios e em todos os momentos. leve no espaço, exterior ao tempo. às vezes precisamos de um refúgio no imutável. manhã. tranquilidade de tudo estar no lugar. inócuo por ser incapaz de nos ferir os sentidos. transparente. conhecido. puro.

sábado, 1 de setembro de 2012

Contrastes de Literatura

Estava eu abstraído a ler contos interessantíssimos de um amigo e de uma amiga (dos quais falarei aqui se os autores me permitirem), quando reparo no meu livro de Português do próximo ano na secretária. Delicioso sabor da antítese que se liberta no ar!


Há que elogiar as capas da Lisboa Editora / Raiz Editora - são muito esclarecedoras do conteúdo do livro. Neste caso é muito fácil de entender: Mensagem + Lusíadas. Que pluralidade estupenda!

sábado, 31 de março de 2012

Excesso de Realidade

Doentio vício de descrever os bons momentos através do texto; de tentar capturar e guardar para sempre todos os sentimentos, pormenores, cores, cheiros e sabores daqueles acontecimentos mágicos que me custa a acreditar ter vivido, como se as memórias não fossem mais que suficientes... Desespero na busca de palavras; sacrifico algumas para satisfazer a sede de possuir outros sinónimos. Debruço-me perigosamente no precipício do que é descritível, arrisco-me a tentar descrevê-lo, quase caindo no abismo da frustração. Sem me preocupar vou corroendo a imaginação, tão débil, gemendo a um canto, e que há muito desistiu de sonhar. Nunca sonho. Obceca-me a realidade. Enjoa-me a ficção.

segunda-feira, 12 de março de 2012

O trinco do portão aberto

Sempre foi o cão mais lindo do mundo, mesmo quando os olhos, já encovados, se encheram de ramelas; mesmo quando o pelo cadente se cobriu com chagas; mesmo quando as moscas se tornaram para ele a única presença fiel... Sofreu.

Agora vejo o trinco do portão aberto - aquele frágil portão improvisado que, injustamente, lhe devia vedar o acesso ao jardim seco - e olho à volta. Lá está tudo, igual: as mesas, pintadas de pó castanho, rodeadas das cadeiras franzinas e enferrujadas; os vasos e canteiros abandonados, onde uma verdura efémera passa despercebida; um tronco ou outro a servir de banco, e algumas mangueiras jazendo no chão de mármore quebrado e gasto. Vejo aqui uma natureza morta, que perdeu a pouca vida que lhe restava. Completamente estéril.

Arrependo-me dolorosamente das tantas vezes em que cedi ao irritante e repetitivo “não lhe faças festas”, ou das outras vezes, em que a pressa para chegar a lado nenhum me fez passar-lhe ao lado.

Confortou-me vê-lo ser coberto de uma terra clara e macia. De volta ao solo e ao ciclo da vida. Finalmente aconchegado, e abrigado do frio de cá fora. Terá o destino que desejo para mim próprio - fertilizar um pouco e, com sorte, fazer brotar uma árvore bonita neste mundo de cimento.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Ganhei um prémio literário!

Sempre soube que gostava de escrever, mas por esta não esperava. As minhas deambulações ocasionais pelo mundo das palavras não resultaram em mais do que um pequeno Belogue, que julgava não ter grande interesse.

Tinha já começado a escrever um conto infantil, floresta espinhosa por onde nunca me tinha aventurado, quando alguém muito teimoso decidiu insistir comigo diariamente para que o terminasse e enviasse para o concurso do Prémio Literário Correntes D'Escritas / Papelaria Locus.

Muitas semanas depois, recebo um telefonema de um número desconhecido, dizendo com toda a inocência e simplicidade "Era só para informá-lo que ganhou!". Saltitei de alegria no banco do carro.

Assim sendo, no último sábado, 25 de Fevereiro, fui à Póvoa de Varzim, tendo oportunidade de dar uma curta espreitadela na majestade da Cidade Invicta, sólida como rocha, debruçada sobre o mar sem medo de cair; e de apreciar uma agradável viagem no Metro mais evoluído do país.

Fui muito bem recebido, senti-me mesmo bem!

Agradecer, explicar porque acho difícil escrever para crianças, e alertar toda a gente que o programa da disciplina de Português nos dias de hoje despreza completamente a escrita. Mission accomplished!

Esta azáfama de parabéns e elogios teve as consequências positivas de me incentivar ainda mais a escrever (esperem um aumento da massa de posts no Belogue), e de me relembrar que também eu Quero Ser Escritor! No entanto, teve a consequência negativa de me deixar estupidamente vaidoso por alguns dias. *dou um estalo em mim próprio*

Entretanto, a minha arqui-inimiga (cujo nome não deve ser pronunciado, pelo que a vou designar pela "palavra P") não se deixa vencer, e volta a investir com os seus cruéis truques psicológicos, causando-me um incrível desinteresse pelos regulamentos de concursos literários, que, por magia, começaram a chover à frente dos meus olhos.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

À conversa com um romeno

À noite, esperando por um autocarro que nunca antes apanhara, vindo a uma hora longínqua, um romeno meteu conversa comigo. "Vais apanhar o autocarro para o Montijo?"

Jovem adulto, magro, de pele muito avermelhada, quase como queimada pelo sol, e de uma beleza muito peculiar e madura, inteirou-me mais tarde que tinha 23 anos.

Poucos minutos foram precisos depois dessa pergunta para eu desligar o mp3, e para ele se sentir completamente à vontade para conversar comigo sem rodeios. E falou, falou, falou... Resumiu-me toda a sua vida, como um idoso solitário que finalmente encontra uma alma disponível para o ouvir. E era uma história realmente interessante. Mudei-me para o banco imediatamente ao lado do dele.

Falou-me do trabalho duro que levava na construção civil, das namoradas e das traições, da sua confiança, que não podia dar a ninguém, e de como eram injustas as ideias que as pessoas formulavam sobre ele sem o conhecerem. Mostrou-me uma fotografia de infância. Deu-me um conselho "como se fosse para um irmão". Exibiu, com a deliciosa inocência de uma criança, a quantidade de brigas em que já estivera envolvido, todas devidas a mais injustiças, e o facto de nunca se ter acobardado. Magrinho, mas forte, dizia. Deixou claro que só queria ser aceite, e que as pessoas não olhassem para ele de forma indiscreta na rua.

Ele não me conheceu. Eu conheci-o inteiramente. Quando olhei para o painel de partidas do terminal, o meu autocarro já lá não aparecia. Mas valeu a pena tê-lo perdido. É uma pessoa com que eu gostava de poder falar mais vezes.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Cumprimentos: O Olhar

O nosso cumprimento é um olhar.

Não há necessidade de nada dizer, de nada tocar, de nenhum músculo mover. Longas conversações se dão naquela metade de segundo em que os nossos olhos se encontram.

Um olhar que antes já fora um desespero inquietante e irracional por nos conhecermos melhor, por desvendarmos a personagem misteriosa que se oculta por detrás daquela pele. Um olhar que se mantém intenso como da primeira vez, mas que agora reflecte uma serena e consciente confirmação de conhecer o mais íntimo da mente do outro, e que segura com firmeza a estranha e perigosa confiança que automaticamente se ergueu entre nós. "Sei quem és."

E dia após dia nada mais se passa. Apenas esta subtil telepatia silenciosa, de vez em quando salpicada de meia-dúzia de palavras inúteis.

Não há mais nada para acontecer. Nada mais pode acontecer.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Falsa Dicotomia da Vida

Costuma-se dizer que a vida tem altos e baixos. Isso toda a gente já sentiu, mas esquecemo-nos que também passamos por muitos períodos neutros. Sei que a maior parte dos seres humanos não concordam comigo, mas para mim estes últimos são os piores.

São períodos cinzentos, em que caímos na rotina. E cair na rotina é desperdiçar tempo de vida. Nada pior que isso!

Perguntam-me então se não prefiro estar na normalidade em vez de estar a sofrer... Pois então sou um romântico! Sem problemas, sem altos e baixos, sem emoções, sem obstáculos grandes para ultrapassar, sem uma boa dose de diferença salpicada pelos dias... qual o interesse de viver?

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Parlamento dos Jovens - Eleições à tuga

Nas escolas portuguesas tem-se o hábito de tornar as eleições, quer para a Associação de Estudantes, quer para o Parlamento dos Jovens, em autênticos arraiais. Exceptuando as eleições de delegados de turma, claro, porque esse é o único cargo disponível para os alunos em que se tem efectivamente que fazer alguma coisa. Começa a balbúrdia: mensagens de apelo ao voto em cada lista, mas totalmente vazias e desprovidas de argumentos (e até de criatividade - um simples "Vota B!" é mais que bom!) proliferam em camisolas impressas ou rabiscadas, e em panfletos e autocolantes reles. Festas, ofertas, música e barulho tentam conseguir a atenção do maior número de alunos. No dia dos sufrágios, apenas 40% dos eleitores se dão ao trabalho de esperar um minuto na fila para exercer o seu direito de voto. Típico português! Porquê criticar os adultos, se os hábitos começam logo nos jovens?

Hoje analisei os espaços publicitários de cada lista candidata ao Parlamento dos Jovens da minha escola, e fiquei deveras desiludido com a palhaçada e a falta de conteúdo que povoavam os placards. (A má ortografia também me preocupou, mas isso hoje em dia é altamente discutível...)

O Parlamento dos Jovens deste ano propõe, através das redes sociais, combater a discriminação (para os alunos do Básico) e fomentar a participação e a cidadania (para o Secundário).

No entanto, em ambos os níveis de ensino, a palavra que impera é "discriminação". E assunto não passa desta porta inicial - não vi uma única definição da palavra, nem sequer uma breve pesquisa sobre os grupos da sociedade que são hoje alvo de discriminação.

As cartolinas coloridas focam-se apenas em dizer que a discriminação é muito má e muito feia, e que temos que acabar com ela, e é por isso que deves votar em nós e não nos outros! Cada vez está mais na moda dizer-se que não se é racista. Os racistas são estúpidos! Uma hipocrisia pegada. Até eu sou racista, às vezes, mesmo tentando contrariar e extinguir os preconceitos que tenho.

O único material publicitário em que encontrei algo mais claro foi o da Lista A do Básico - uma carolina que, de forma [relativamente] bem persuasiva, nos lembrava que o presidente da maior potência mundial é negro, que a mulher mais rica do mundo é negra, que o homem mais rápido do mundo é negro, e por aí. E que não devemos odiar as pessoas pela cor da pele. Pessoal, estamos em que século?! Não quero ser desmancha-prazeres, mas se querem lutar contra o Apartheid, já vão muito atrasados!

Nada podia explicar melhor o meu ponto de vista do que este genial sketch do Estado de Graça:

Falta perguntar - quantos destes aspirantes a políticos tugas não têm aversão aos brasileiros, ou aos ucranianos, ou aos russos, ou aos romenos, ou até aos espanhóis (em casos mais extremos)? Quantos não chamaram "mongoloi*e" àquele colega com uma deficiência mental? Quantos não gozaram com aquele colega obeso, e com o outro colega, que era um rapaz mas lhes parecia uma rapariga? Quantos não se afastaram de um cigano na rua? São imensos os grupos que sofrem de discriminação hoje em dia, mas desses não lhes convém falar.

Repare-se ainda no título de uma das campanhas - "Contra a Discriminação nas Redes Sociais". Toda a gente sabe que é importantíssimo combater a discriminação dentro das redes sociais, porque fora delas já não faz mal, certo?
Toda esta falsa cidadania e propaganda fácil, a ausência de argumentos e de reflexão sobre os assuntos propostos e a banalidade das ideias conseguidas levam-me a pensar que os meninos só querem é poder fazer barulho no átrio, e experimentar sentar o rabinho nos assentos da Assembleia da República.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Lisboa

Quero correr pelas praças feitas de liberdade, deambular pelas avenidas ortogonais cheias de vida, e pelas irregulares também. Quero conhecer as pessoas do comboio, do metro e dos autocarros. Quero ver bocados de diferentes cantos do mundo mesmo ao meu lado. Quero estar mais próximo da minha comunidade, e conhecer as outras. Quero contemplar a diferença que se reproduz saudável, sem limites nem censuras.

Quero ver oportunidades a passar, e apanhá-las. Quero aprender, encher a minha mente com o que a humanidade tem de mais sábio e interessante, e saborear novos conhecimentos.

Quero respirar os jardins, tocar nas estátuas, abraçar as árvores e estudar na relva fresca. Sentir a paz da natureza, carinhosamente protegida e cuidada pelo ser monstruoso que mais a destruiu.