domingo, 16 de outubro de 2016

Como queremos viver?

Pelo meio das conversas telefónicas sobre as chatices do trabalho que já acabou mas ainda tresanda no corpo, dos anúncios a perfumes e a revistas no Politeama, das cabeças pendentes que martelam no ar, drenadas de energia por aquela exploraçãozinha moderada que nos habituámos a acarinhar como mal necessário, pelo meio dos estudos na capa do Destak que nos dizem que oh!, afinal os portuguesas são felizes (rejubilemos), pelo meio de já-não-sei-quantos tons de cinza envergonhados em capas de pano às bolinhas cor-de-rosa, iluminava-os a luz peneirada nas perfurações da publicidade autocolante da janela, iam quatro estudantes mergulhados numa conversa sobre dramaturgia.

Parei de ler, quis ouvi-los. O meu coração bateu forte, tinha tantas perguntas para lhes fazer. E se encenares um quadro em palco, e as actores ficarem paradas, só em estátua, um quadro estático, isso é teatro? E se for fora do palco, não é teatro? Não perguntes à professora de português amanhã; que percebem as professores de português sobre o teatro se apenas nos ensinam a classificar orações?, pensa tu agora e responde. Ela disse que o texto dramatúrgico é algo que se consegue pôr em palco, mas então não achas que todos os textos e todos os quadros são dramatúrgicos? Dizes que não dá para fazer dramaturgia com um quadro que tem apenas um ponto no meio? Então tens que conhecer o "Flatland", ou o "The Dot and the Line: A Romance in Lower Mathematics". Sabias que o Paul Klee disse que desenhar é como levar uma linha a passear? __ Próxima estação, Foros de Amora. Levantaram-se e saíram, e eu quedei-me apenas a sonhar.

Estaremos mortas todos os dias em que não ouvirmos uma discussão sobre filosofia no comboio suburbano, ou sobre democracia na Travessa dos Teatros, com um megafone a ampliar a palavra de quem fala. Todos os dias em que não virmos raposas na Arrábida ou uma matilha de cães selvagens na estação de Coina. Estaremos mortos todas as noites em que não montarmos a tenda no quintal, só para dormir num sítio diferente, ou em que não formos abismadas na praia pela imensidão de um cargueiro a deslizar no breu do horizonte. Estaremos mortas todas as noites em que não caminharmos em grande grupo pela serra, rasgando a escuridão com as nossas lanternas, mantas nos ombros e juntos para parecermos muitos. E todos os dias em que não cantarmos a "Oração" a saltar e a sorrir, ou a Grândola abraçadas e a marchar. Estaremos mortos todos os dias em que não contarmos ou escutarmos histórias do impossível. Estaremos completamente mortos, enterradas, putrefactos, porque menos que isso não é viver. Menos que isso não é suficiente, menos que isso não vale a pena.

Eu sei como quero viver. Tu sabes como queres viver?

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