sexta-feira, 26 de junho de 2015

Em paz

26 de Junho de 2015 nas primeiras horas do dia.

Quando tudo me parece familiar e seguro, e sinto o aconchego quente das pequenas coisas maravilhosas... Ou quando choro encolhido nas pedras da rua e atacado pela chuva impiedosa, desamparado, desnudo... É aí mesmo, nessa aresta!, que está a beleza da minha vida.

A natureza é tão perfeita e equilibrada que me leva a crer que a vida deve exactamente tantas horas à fogueira aconchegante como ao vento gélido. Mas essa é uma simetria que dói aceitar. Afinal não é suposto termos mais horas de alegria do que desespero...? Que se dane o rácio. A felicidade está em nós, na forma como vemos as coisas, como agimos e somos.

Se a felicidade é um caminho e não um destino, então eu posso ser a pessoa mais feliz do mundo nas vésperas da mais temível avaliação! A felicidade não é um alívio que só acontece depois de eu ter um emprego, uma família e muito sucesso. Não é uma recompensa! A felicidade não é um alívio que tenha que esperar que eu chegue à meta de acabar estas avaliações todas, daqui a uns dias. A felicidade não é um alívio que tenha que esperar que o dia chegue ao fim para me reconfortar na cama. Cada segundo que eu esperar para ser feliz será um segundo completamente desperdiçado. A felicidade é um caminho, não um destino, e por isso não se espera para chegar lá; anda-se.

É esta a magia do último comboio, a deslizar iluminado pela noite silenciosa e simples: deixa-me pensar. E quando saio dele a brisa fresca da noite pede-me para continuar.

Deixo-me ascender sozinho nas escadas rolantes, tão leve como uma alma que se eleva para o céu. Este espaço é paradoxal — nem é exterior nem interior! — e a luz branca inunda a matéria do vidro. De repente sinto-me estupidamente feliz, talvez como nunca estive na vida. Do meio do meu peito escorre um pouco de excitação, e espalha-se pelas veias.

Saio da estação e acredito que não vou sobreviver à viagem de carro até casa.
Em paz.

Não estou mesmo a conseguir imaginar o dia de amanhã.
Não consigo imaginar acabado aquele livro que tenho estado a fazer com aquele grupo maravilhoso.
E estou bem.

Se eu morresse agora, ia deixar um monte de coisas por acabar...
Mas se eu morrer só daqui a cem anos também vou deixar um monte de coisas por acabar. Não há outra maneira, a morte é inesperada, e esperar por ela é morrer. Se eu estiver preparado quando a morte chegar, então ela já me encontrará morto.

Se eu morresse agora queria que continuassem o que eu comecei.
Não para que permanecesse a minha memória ou a minha fama, mas porque queria que aquilo que eu deixasse fosse tão bom e tão benéfico que valesse a pena continuarem a fazê-lo. Se eu morresse agora queria que as minhas alunas e os meus alunos continuassem a dançar, não para se lembrarem de mim e me fazerem uma homenagem, mas porque essa dança as deixava felizes, e era uma motivação para se superarem a si próprios todos os dias. Quero acima de tudo que o bem que eu tenha feito ao mundo permaneça.

A estrada infinita, completamente lisa, é interrompida pelo peso da Nuxa, a minha viatura. Tão pequena e frágil durante o dia, mas tão grande e robusta no meio desta noite vazia e desta estrada lisa. Ela tem-me tornado tudo tão mais próximo, tão mais aconchegado e simples. Arrependo-me de todas as vezes que disse que odiava carros. Sinto vontade de abraçá-la.

O meu alívio e a minha felicidade não têm que esperar que eu chegue a casa para dormir daqui a pouco. Estou feliz. Acho mesmo que vou morrer na viagem de carro até casa, por isso é melhor escrever tudo antes de ligar o motor. Entre mim e o volante, o computador aquece-me o colo, e aconchega-me tanto. Ele nunca liga depressa, mas desta vez ligou. E escrevi tudo antes de me entregar à estrada, confiante que o computador fosse recuperado do meio dos escombros e que estes bytes de texto pudessem sossegar as pessoas que amo.

1 comentário:

  1. E o que é chegar a essa meta da felicidade, essa ilusão que serve para manter alguns acordados e atropelar o maravilhoso processo? Desculpa quebrar este processo de ti para ti, mas não consegui deixar estas palavras que o teu ser não quis guardar só na tua mente. Mais acção. Dando aos dedos o que escrever.

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